O passageiro que entra no Uber de Fernando Alves de Lima pode ganhar, além das habituais água e bala, uma palhinha. Há cinco meses, o percussionista da banda Raça Negra passou a se dividir entre a carreira artística e o trabalho como motorista do aplicativo de transporte.
O grupo havia feito uma pausa neste ano. Entediado e precisando reforçar o orçamento, Fernando Monstrinho, apelido do músico de 45 anos, decidiu se arriscar no volante.
Fernando Alves de Lima, do grupo de pagode Raça Negra
Também pretendia não deixar o tempo livre acabar com o amor. “Sou casado há onze anos. Se ficar em casa todos os dias você começa a arranjar confusão com a mulher, fica impaciente”, brinca.
Um dos conjuntos de samba que mais sucesso fez no Brasil, o Raça Negra resiste após 33 anos na estrada. Atualmente, joga a seu favor uma espécie de culto -da internet a festas temáticas pelo país- ao chamado pagode dos anos 1990. Uma página do Facebook que homenageia o gênero tem cerca de 300 mil curtidas.
Esse resgate contribui para que os maiores sucessos atravessem gerações, e Fernando testemunha o efeito disso ao volante, durante as longas viagens que o trânsito de São Paulo proporciona.
“Dificilmente você encontra uma pessoa que diz que não conhece. O único que me disse que não conhecia foi um nigeriano, mas depois, por incrível que pareça, tocou ‘É Tarde Demais’ no rádio e ele falou que já tinha ouvido”, conta.
Saber que a batucada do seu tantã atinge públicos diversos surpreendeu o artista. “Eu pego rockeiros e eles dizem que o único grupo de samba de que gostam somos nós, porque nós temos conteúdo”, afirma, orgulhoso.
Quando o passageiro pergunta se ele exerce outra profissão além de motorista, a história completa sai aos poucos. “Procuro não falar direto que sou do Raça Negra. Mas, quando eu falo que sou músico, as pessoas ficam curiosas”, explica. Com a identidade descoberta, porém, o percussionista não hesita em agradar. Há quem peça selfies, outros para que ele cante. Alguns vídeos já foram parar no aplicativo Snapchat.
“Naquele momento em que a pessoa descobre, você não é mais o motorista da Uber, mas o cara do Raça Negra. Tento deixar a viagem o mais divertida possível. Esse é o papel de cada um que está ali. Tem a balinha, tem água, e, se pedir pra cantar, a gente canta também. Eu falo antes que não sou o cantor, mas dá para quebrar o galho”, diz.
Em uma quinta-feira chuvosa de outubro, Fernando transportava a advogada de uma grande empresa quando o trânsito intenso na marginal Pinheiros interrompeu a viagem. O dilúvio que derrubou árvores a assustou, e o ambiente carregado só se desfez quando ele mencionou o nome do grupo.
“Ela disse ‘ah, não acredito’, foi na internet e viu a minha foto lá. Logo em seguida me mostrou no celular um vídeo em que cantava uma música nossa em uma comemoração dois dias atrás. Aí começou a contar que conheceu o marido por causa das músicas e que é super fã”, relembra.
VIDA CIGANA
Dentro do porta-luvas do carro fica um estojo repleto de CDs da banda, os quais o músico diz praticamente não escutar. A bíblia, por sua vez, está visível no console. Evangélico há seis anos, ele trocou o apelido Monstrinho -recebido na juventude- por Montinho para cantar nos cultos e lançar um disco de canções gospel. “As pessoas iam falar: ‘um monstro na igreja, o que é isso’? Então monstrinho não ia dar certo”.
O projeto religioso é a terceira jornada profissional dele, que também voltou a participar de 10 a 12 shows por mês pelo Raça Negra. O Uber fez com que a vida cigana, à qual o artista está acostumado pela agenda cheia, se repetisse dentro de São Paulo. Mesmo quando a viagem é curta, ele acumula histórias.
“Você vai aprendendo sobre a vida dos outros, como aceitar as pessoas. Sabe aquele filme do conselheiro amoroso com o Will Smith? Às vezes eu também sou isso. Já apaziguei, tentei colocar na cabeça das pessoas que a vida de casado é difícil”, afirma, certo de que em amor e sofrimento o Raça Negra é especialista.
Fonte: 1.folha.uol.com.br