Federações terão de realizar testes em cada um dos atletas russos, usando padrões internacionais, para só então liberá-los
O Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou neste domingo que a delegação da Rússia vai participar dos jogos no Rio de Janeiro, desfalcada da equipe de atletismo. Os competidores das outras modalidades, no entanto, só poderão ir para a Olimpíada depois da permissão das suas respectivas federações internacionais. Eles também precisarão comprovar que nunca foram pegos no exame antidoping — ainda que já tenham cumprido punição anteriormente. O pedido pelo banimento total foi feito por atletas e órgãos esportivos de dez países depois que uma alta autoridade do sistema antidoping russo revelou que os atletas do país foram, pelo menos até dois anos atrás, sistematicamente dopados, com a conivência e o apoio do Ministério dos Esportes de Moscou. Antes disso, a Wada, a agência mundial antidoping, já havia conduzido uma investigação própria e concluído que os integrantes da equipe de atletismo ingeriram substâncias proibidas regularmente, o que já resultou na proibição de sua participação na Olimpíada carioca; os recursos impetrados foram negados na quinta-feira pela Corte Arbitral do Esporte, que manteve a suspensão.
A revelação do complexo esquema de doping na Rússia, com nítidas digitais do próprio governo, serviu para expor com fatos e dados as manobras escusas com que a política usa o esporte para seu benefício, e vice-versa. As suspeitas de doping sempre rondaram a União Soviética, a Alemanha Oriental e outras potências esportivas do extinto bloco, mas o treinamento dos atletas era cercado de segredo. Com o desmoronamento do comunismo, a fiscalização internacional se intensificou. Foi neste momento que o Ministério do Esporte da Rússia, cioso da preservação do lugar do país no topo dos pódios, e a federação de atletismo, dependente do doping para manter os bons resultados, se uniram em um enredo que mais parece filme de espionagem. Um ex-diretor do laboratório antidoping de Moscou, Grigory Rodchenkov, deixou o cargo, mudou-se para os Estados Unidos e revelou o funcionamento do esquema. Ele contou como na Olimpíada de inverno de Sochi, em 2014, técnicos e agentes dos serviços de inteligência russos trocavam as amostras de urina de atletas dopados por outra sem traços de doping, coletada meses antes. O serviço era feito de madrugada, por um pequeno grupo que, iluminado por uma única lâmpada, trocava os frascos através de um pequeno buraco disfarçado na parede da sala de acesso restrito do laboratório. “Funcionava como um relógio suíço”, na descrição de Rodchenkov. Desta forma desapareceram mais de 100 amostras “sujas”.
Leia também:
Isinbayeva detona ‘funeral’ do atletismo: ‘Puramente político’
Rússia acusa EUA de conspiração
Putin critica relatório e cita ‘interferência política’
“Esta dopagem sistemática serviu para fazer do sucesso em competições esportivas uma demonstração de força russa nas relações internacionais. É uma continuação da cartilha usada com grande eficiência na época da União Soviética”, avalia Lee Igel, professor do departamento de Esportes da Universidade de Nova York. Durante a Guerra Fria, cada competição esportiva internacional era palco de uma disputa velada entre Estados Unidos e União Soviética pelo título de maior potência. Protegidas pelo segredo de estado, as autoridades esportivas de Moscou encomendaram a institutos de pesquisa diversos estudos sobre os efeitos dos suplementos na melhora do desempenho esportivo e assim criaram uma fábrica de campeões, inclusive em países satélites, muitas vezes sem que os atletas soubessem que estavam sendo dopados. Entre 1964 e 1988, a Alemanha Oriental, país de 17 milhões de habitantes, ganhou 454 medalhas; calcula-se que 10.000 atletas seus consumiram substâncias ilícitas. “Os atletas não se dopam sozinhos. Quando o doping é constatado, é preciso punir toda a comissão técnica”, argumenta Carlos Arthur Nuzman, ex-atleta e presidente do Comitê Olímpico Brasileiro e da Rio 2016.
Os exames antidoping entraram nas Olimpíadas em 1968. Naquele ano um único atleta foi pego, por excesso de álcool no organismo. Desde então, tanto os testes quanto as substâncias se aperfeiçoam continuamente, numa corrida de gato e rato. “Não é realista imaginar o esporte totalmente livre de doping. Mas é possível reduzir significativamente seu uso, de forma que os atletas ‘limpos’ consigam ganhar dos que apelam a suplementos”, diz Ian Boardley, especialista em psicologia do esporte da Universidade de Birmingham. A difícil batalha vem sendo travada principalmente pela Wada, agência criada em 1999, mas que só há pouco mais de dez anos conseguiu implementar o primeiro código mundial antidoping.
Analisando-se os resultados positivos, a dopagem é mais comum no atletismo (31% dos casos), seguido por ciclismo e o levantamento de peso (empatados em 16%). Quanto mais disputado o esporte, mais a dopagem fará diferença – daí seu alto uso no atletismo e no ciclismo, onde frações de segundos separam o primeiro do último colocado. Uma das substâncias mais usada por esses atletas é a eritropoietina, conhecida como EPO, que melhora em 30% a resistência dos competidores ao aumentar a quantidade de glóbulos vermelhos no sangue, o que facilita o transporte de oxigênio para as células. “Consumir EPO traz risco de morte, mas nem isso é levando em conta diante da glória da vitória. É algo intrínseco ao ser humano”, explica Thomaz Mattos de Paiva, diretor de controle de doping da Confederação Brasileira de Atletismo. Um dos instrumentos que as agências nacionais de controle de dopagem vêm usando é o mapeamento genético dos atletas através de exames de sangue, como forma de detectar alterações anormais ao longo do tempo. Esse tipo de prevenção se tornou essencial diante do avanço do doping genético, que faz parecer natural no organismo a produção maior de hormônios ou glóbulos vermelhos. Como se disse antes: um interminável jogo de gato e rato.