Participação dos jegues vem diminuindo no evento a cada ano (Arquivo Pessoal)
Realizada há 21 anos em Miguel Calmon, a 380 km de Salvador, no centro norte da Bahia, a Jegada, evento em que os participantes desfilam em jumentos, está ameaçada de extinção.
A festa é uma das mais tradicionais do Nordeste, onde eventos que têm o jumento como principal protagonista é comum de se ver em cidades do interior.
A Jegada é feita junto com uma cavalgada, animada por forrozeiros e com distribuição de cerveja para quem compra uma camisa. Ela começa na entrada na cidade, por volta do meio dia, junto com os participantes da cavalgada. A abertura é feita com bandas locais que tocam arrocha e forró.
A concentração começa por volta das 9h em bares locais. Primeiro, sai a cavalgada em direção ao Parque do Cavalo de Miguel Calmon e uma hora depois a Jegada, pelas ruas, parando no Centro por volta das 16h e depois indo para o Parque do Cavalo, onde é encerrada.
No Nordeste, o maior evento do tipo é a “Jecana Oficial do Brasil”, realizada há 45 anos em Petrolina (PE) e que este ano deu R$ 30.000 em premiações em competições diversas – corridas, desfiles, “jegue fashion” etc. O evento é uma gincana com jegues – que é o mesmo jumento.
Na Bahia, a ameaça ao fim da Jegada se dá por conta do abate de jumentos, iniciado pelo Governo do Estado em um frigorífico de Miguel Calmon, onde 300 animais já foram mortos. A previsão é abater 2.000 até outubro.
Os abates, segundo o governo, são para diminuir a quantidade de jumentos abandonados pela falta de utilidade e que circulam pelas rodovias, causando acidentes.
A intensão é exportar o couro do animal para a China e a carne é doada para o zoológico de Salvador. O resíduo restante é transformado em ração animal em uma graxaria – fábrica de produtos não comestíveis.
O Ministério Público, porém, contesta os abates por não considerar a “solução adequada e ética sob o viés normativo internacional e constitucional” e, por enquanto, a atividade está paralisada.
Organizador da Jegada, o comerciante André Souza Santos, 43, rebate os argumentos usados pelo Estado para justificar o abate e diz que “é raridade os acidentes com jumentos nas estradas”.
Ele diz ainda que o animal é muito útil para os trabalhadores rurais na região de Miguel Calmon, onde se estima ter 5.000 jegues.
“Eles estão usando tudo para justificar e matar os bichinhos. Os acidentes acontecem mais com o gado [bovinos] do que com jumentos”, André afirmou. “Tenho visto ocorrer muitos acidentes com cavalos e bois”, disse, informando que participa da Jegada desde criança.
“O jumento para nós é o animal sagrado do Nordeste. Aí vem um cara da China dizer que tem de matar, lamentável. Infelizmente, no nosso país quem tem dinheiro pode tudo, quem não tem fica calado sendo julgado”, desabafou.
André afirma que o jumento ainda tem muita serventia, diferente do que diz o Estado. (Arquivo Pessoal)
A frente da Jegada há 10 anos, André relata que vem sentindo já uma diminuição de animais a cada evento (realizado todo mês de maio), mesmo sem o abate ter ainda começado.
“Este ano distribuímos 1.000 camisas, mas só conseguimos por uns 600 animais na rua. Já tivemos cerca de 1.300 jumentos na rua”, informou, sem saber explicar ao certo o que teria causado a redução da presença dos animais.
O abate – diz André – não preocupa muito pela realização da Jegada, mas sim “pela extinção da raça”. “Já pensou se matar mesmo esses 2.000 até o final do ano?”
Dono de três jumentos, o mecânico Adailton Souza Silva, 45, idealizador da Jegada, diz que está preocupado com o abate.
Ele também descarta a ideia de que o animal não é mais valorizado e que está sendo abandonado. “Esses dias mesmo, me ofereceram R$ 1.000 no animal e eu não vendi”, disse ele.
“E tem muito jegue bom aí que vale entre R$ 1.200 e R$ 2.000”.
O abate na Bahia é feito com base na Portaria Estadual 225, de 29 de junho de 2016, e o procedimento é praticamente igual ao realizado com bovinos.
A estimativa do governo da Bahia é obter cerca de 200 toneladas de produtos, os quais recebem a rotulagem específica com dizeres “produto não destinado à alimentação humana” e “rígido controle na armazenagem e distribuição”.
Em Miguel Calmon, o abate ocorre no Frigocezar, que vê na atividade uma oportunidade de negócio e nega qualquer tipo de ameaça à Jegada, pelo contrário. O frigorífico afirma que o abate incentivará a criação de animais para venda.
“Trata-se de uma nova possibilidade de mercado para a Bahia, com a qual o estado irá atrair capital estrangeiro para o investimento em melhoramento genético desses animais”, diz o Frigocezar em nota.
O frigorífico espera retomar com os abates assim que o Ministério Público Estadual concluir a análise dos documentos solicitados e liberar a atividade. Os abates pararam no dia 18 de julho.
Jegada no Centro de Miguel Calmon. (Foto: Calmon Notícias)
Churrasco de jumento
Preocupado em transformar o jumento em uma potencialidade econômica, um promotor do Rio Grande do Norte vem incentivando os nordestinos a fazer churrasco com a carne do animal e a consumir o leite de jumenta e derivados.
Titular do Ministério Público Estadual em Martins, a “Campos do Jordão do Rio Grande do Norte”, Silvio Brito diz que tem se debruçado sobre o assunto nos últimos anos e chegou a promover até churrasco com carne de jumento para autoridades locais e a imprensa em Apodi, sertão potiguar.
A solução, diz Brito, surgiu como forma de valorizar o animal que nas últimas décadas vem perdendo cada vez mais utilidade no campo como meio de transporte ou montaria, sendo substituídos por máquinas e abandonados, com risco de acidentes nas estradas.
A ideia vem causando polêmica, sobretudo com ambientalistas e defensores dos direitos dos animais, alguns dos quais chegaram a ameaçar o promotor e a família dele até de morte por meio das redes sociais.
“Cheguei a representar criminalmente contra um homem do Paraná, que, por meio da ouvidoria do Ministério Público, me fez ofensas xenófabas, e processei por injúria três advogados – dois de Mossoró, sendo um deles da comissão de Meio Ambiente da Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – e outro de Fortaleza. Poderia ter processado uns 100, mas só peguei os ‘cabeças’. Tinham muitos perfis falsos também”.
Brito diz não ter se intimidado: “eu acredito firmemente na potencialidade econômica do jumento. Aliás, causa-me enorme frustração o fato de as demais pessoas não verem isso. Todos os estudos e nossa experiência apontam que o jumento é um animal de qualidades extraordinárias”.
Estudos
No Rio Grande do Norte, um grupo de empresários que prefere o anonimato devido à polêmica que o assunto gera passou a realizar estudos de viabilidade econômica com a criação de jumentos.
Eles foram impulsionados a fazer o estudo após a visita de um grupo de chineses que disseram ter interesse na importação inicial de 10.000 cabeças de jumento por ano, com previsão de em poucos anos chegar a um milhão de animais ao ano para consumo da carne, leite, aproveitamento do couro e para uso na indústria de cosméticos. A expectativa de lucro com um milhão de jumentos seria de R$ 3 bilhões.
Churrasco feito com carne de jegue em Apodi. (Reprodução/Veja)
O problema é o custo benefício para quem vende, pois os chineses, de acordo com os empresários, chegaram oferecendo, inicialmente, até R$ 900 por cada jumento. No atual contexto, seria até lucro para quem vendesse, pois o trabalho seria apenas capturar os animais abandonados.
Mas, como a demanda dos chineses é grande, a atividade se tornaria predatória e o jumento entraria logo em extinção, já que se estaria vendendo muito, sem a criação em larga escala para se ter mais animais, o que envolve mais custos. E os chineses já deixaram claro que não pretendem investir na criação do jumento, apenas na compra.
A lógica proposta é a mesma da que foi realizada entre as décadas de 1970 e 1980 no Nordeste, quando os jumentos começaram a ser abandonados e despertaram nos japoneses o mesmo interesse que os chineses têm hoje.
A venda ocorria por meio de um frigorífico de Pernambuco, que vendia por R$ 30 a cabeça do jumento.
“Durante alguns anos, centenas de caminhões saíram do Ceará Bahia, Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba com direção a Pernambuco para ser exportado para o Japão. Em uma década, a população de jumentos foi reduzida em 80%”, afirma o promotor Silvio Brito, com base em estudos históricos que fez.
Ordenha feita em jumenta na Sérvia (DmotionInfo/Reprodução)
Serventia
Mesmo não tendo a mesma finalidade de antigamente, o jumento – defende o promotor – pode continuar servindo ao homem do campo, em especial ao sertanejo.
“O jumento pode fornecer até 100 kg de uma carne de primeiríssima qualidade, uma peça de couro de alto valor (avaliada em mais de R$ 120,00 cada peça) e ainda um leite que pode salvar a vida de milhões de pessoas, em especial crianças e idosos, que sofrem com intolerância à lactose ou deficiência nutricional”, completou Brito.
Para ele, “é uma pena que alguns ambientalistas, a pretexto de proteger o jumento, acabem se tornando seu maior inimigo, na medida em que se recusam a enxergar sua potencialidade e atuam para sabotar todas as demais iniciativas nesse sentido, o que tem mantido o jumento numa condição degradante, de ‘indigente do mundo animal’, relegado ao abandono e à extinção”.
Diretora da ONG Bicho Feliz, que atua no Nordeste, a defensora da causa animal Gislaine Brandão, é contra o uso de jumentos para consumo da carne, couro ou leite:
“É um animal que vem sofrendo há décadas, eles devem é ser aposentados, livres, sem trabalho. O Estado brasileiro deveria cuidar melhor desses animais, não dando para os chineses”.
Alternativa promissora
No Brasil, há duas raças de jumento, o “nordestino” e o “pêga”, que também está no Nordeste, mas possui mais presença nos estados de Minas Gerais e São Paulo.
Em 2013, a FAO (braço da Nações Unidas para a agricultura e alimentação) contabilizou cerca de 915 mil jumentos no Brasil e aproximadamente 43,5 milhões de cabeças no mundo, com maior concentração na África (19,3 milhões), Ásia (16,8 milhões), América (6,7 milhões) e Europa (534 mil).
Segundo a FAO, “a criação de jumentos encontra-se em extinção”. Em função disto, na Europa já vem sendo desenvolvidas políticas com foco na proteção e incentivo à criação.
Jumento pêga (Reproduçção/ABCJ Pêga)
No Brasil, são poucos os estudos relacionados ao aproveitamento econômico da carne, leite e couro do jumento, como relata um artigo científico de 2015 de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do mesmo estado.
Publicado na Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, o artigo é assinado por Adriano Henrique do Nascimento Rangel, José Geraldo Bezerra Galvão Júnior, Aurino Alves Simplício, Rayssa Maria Bezerril Freire e Luciano Patto Novaes.
O estudo, que tem o título “Aspectos composicionais e nutricionais do leite de jumenta: uma revisão”, afirma que “a criação racional de jumentos, com foco na produção e consumo de leite, é uma alternativa promissora, associado às características biológicas do leite dessa espécie”.
Sugere ainda que “a implementação de programas de incentivo à criação e preservação de jumentos é fundamental, em particular, na zona Semiárida do Nordeste Brasileiro, sendo uma opção de fonte de desenvolvimento econômico para a região”.
Os pesquisadores afirmam que “o leite de jumenta apresenta relevante similaridade ao leite humano e seu consumo tem aumentado, associado a resultados de estudos que confirmam o seu uso como um alimento seguro e válido para maioria dos casos de intolerância alimentar múltipla”.
O leite de jumenta apresenta menor teor de gordura e, teores de lactose e pH semelhantes, se comparados ao leite humano, destacam os pesquisadores.
“Possui maior percentual de ácidos graxos poli-insaturados em relação ao leite de ruminantes [vacas]”.
Procurado para comentar sobre incentivos a criação racional de jumentos, com vistas ao consumo de carne, leite e derivados, a assessoria de comunicação do Ministério da Agricultura informou na sexta-feira passada que não teve retorno da área técnica do órgão.
Sem representação
A criação de jumentos nunca foi algo que no Nordeste incentivasse a formação de uma associação e por isso não há quem represente os jumentos nordestinos.
Com relação ao jumento da raça pêga, no entanto, há uma associação que vem trabalhando com a melhoria da raça desde 1947.
Jegues recolhidos na beira das estradas em Apodi (Reprodução/Veja)
No nordeste há hoje 6.262 jumentos e jumentas registrados como pêga, afirma a Associação Brasileira de Criadores de Jumento Pêga, sediada em Belo Horizonte.
Os animais da raça pêga são destinados a reprodução de muares (burros e mulas) e evolução da espécie. São animais com características distintas, de acordo com o padrão da raça.
Os asininos da raça pêga também podem e são utilizados para o trabalho no campo (serviço, tração), porém, além disso, são destinados a sela, lazer, enduro e outras finalidades.
A associação diz que nunca fez um estudo sobre o consumo humano da carne de jumentos, porque “o custo de criação é muito alto para destinar ao consumo humano da sua carne, pele e leite”, declarou a entidade, em nota.
“Com relação à carne, existe resistência de nossa população em consumir carne de equídeos devida nossa tradição. Outrossim, o preço oferecido pela carne de jumentos, mesmo para exportação, é muito baixo comparando com os custos da criação de jumentos pega”.
A associação informa ainda que com relação ao leite, os criadores de jumento pêga buscam melhoramento genético e por isso as crias devem ser bem cuidadas e alimentadas.
“Assim, devido a pouca quantidade de leite produzido pela jumenta, o mesmo é destinado apenas às crias. Contudo, os animais que não tem mais utilidade e representam um problema social poderiam ter essa destinação”.