Não é sempre que um filme tem duas oportunidades de contar uma história de forma ousada e surpreendente. “A menina que matou os pais” e “O menino que matou meus pais” infelizmente desperdiçam suas chances.
Os filmes, gravados ao mesmo tempo pela mesma equipe e elenco, têm a proposta de narrar as diferentes versões dadas pelos autores de um dos crimes mais infames do Brasil.
Enquanto um segue o relato de Suzane von Richthofen, condenada em 2006 pelo assassinato de seus pais, o outro retrata a história contada por Daniel Cravinhos, então namorado da jovem e também julgado como culpado.
A ideia, com formato inicialmente ousado e raro, esbarra no entanto em roteiros poucos inspirados.
Ao dispensarem qualquer inovação narrativa e adotarem uma linguagem padronizada, apresentam retratos tão maçantes que dão poucas chances à dupla de protagonistas (Carla Diaz e Leonardo Bittencourt).
Depois de uma longa espera, aumentada pelo adiamento causado pela pandemia, os dois filmes estreiam ao mesmo tempo nesta sexta-feira (24) na plataforma digital Prime Video.
A outra face
Por mais frustrante que seja para quem esperava ver as produções nos cinemas, a mudança para o serviço de vídeos na verdade fortalece o projeto.
Afinal, com a possibilidade de maratonar os dois filmes de uma hora e meia cada, ou até de pausar e analisar cenas complementares, o público pode montar uma narrativa um pouco mais empolgante.
No processo, também economiza dois ingressos – e a decepção de sair de uma sessão com a sensação de ver uma obra pela metade. Afinal, uma não funciona sem a outra.
Ambos seguem uma linha de tempo muito parecida. Começam pelo momento em que o casal se conhece e terminam no assassinato, e até dividem eventos marcantes, mas diferem completamente em relação ao desenrolar das situações.
Enquanto Suzane se coloca como influenciada por um jovem ciumento e possessivo, Cravinhos fala sobre uma namorada infeliz, manipuladora e potencialmente abusada pelo pai.
Retratos tão conflitantes poderiam criar uma narrativa rica e complexa, principalmente se fossem costurados de forma inteligente em um só roteiro que conseguisse expor os contrastes.
Mas, ao dividi-los como tramas fechadas, acaba diluindo a força existente nas enormes contradições.
Público esquecido
Para piorar, a produção esquece que no cinema não há obrigação de imparcialidade – em especial se a ideia já era a de se basear em dois lados dos mais suspeitos.
A decisão de dar os mesmos espaço e oportunidade às duas versões é louvável, com durações e linguagens semelhantes nos dois filmes, mas não serve de muita coisa se a história contada já não era interessante para começar.
O relato de Cravinhos, base de “A menina que matou os pais”, é francamente terrível. A primeira hora, focada na construção do relacionamento dos dois, parece mais um romance jovem comum, com pitadas de angústia adolescente que demoram tempo demais para serem esclarecidos.
Em momentos como estes, é como se o roteiro tivesse se tornado refém da proposta e se esquecido de sua função primordial: manter o público engajado.
Reconstituição de luxo
Com uma base de sustentação tão frágil, chega a ser injusto avaliar o trabalho dos protagonistas.
Diaz (conhecida principalmente por trabalhos de sua infância, como “Chiquititas” e “O clone”) e Bittencourt (“Malhação”) até conseguem entregar versões bem distintas de seus personagens.
Mas, sem uma narrativa mais rica e complexa, ficam limitados a sombras caricatas carentes de nuances.
Com tudo isso, “A menina que matou os pais” e “O menino que matou meus pais” se tornam dois filmes de certa forma desperdiçados, que partem de uma iniciativa ousada mas se acomodam em um formato seguro.
Sua soma até daria uma bela reconstituição de luxo, digna de um grande episódio de “Linha direta”. Faltou só lembrar que, no fim do dia, ainda eram produções de cinema.
Fonte: https://g1.globo.com/