Contrariando a tradição de vida andarilha, povos ciganos e circenses da Bahia viram-se diante da necessidade de ficarem confinados por causa da pandemia de covid-19. Sem endereço fixo, muitos deles não têm acesso às políticas públicas e, coibidos de viajar e exercer suas atividades comerciais, já estão passando fome, conforme denuncia o Instituto Cigano Brasileiro (ICB). Com o segundo maior número de acampamentos ciganos do país, a Bahia tem 53 cidades com presença dessa população, segundo dados do IBGE (2011).
Em ofício enviado ao governo do estado, no fim de março, a entidade lembrou que os ciganos, no geral, são comerciantes informais que vivem de vendas ambulantes de produtos como relógios, bijuterias e panelas, enquanto as mulheres ciganas trabalham com a quiromancia (leitura de mãos) e o comércio de artigos de cama, mesa e banho. Por executarem esses serviços nas ruas, a comunidade justifica que perdeu o meio de sustento de suas famílias.
“Não está sendo fácil. Nós estamos com a consciência de que é preciso ficar em isolamento e estamos recomendando que ciganos de todo o país fiquem em suas casas e barracas, mas quem fica em confinamento fica sem comer. Existe essa dificuldade de colocar os nomes deles no Bolsa Família e CadÚnico porque alguns não têm endereço fixo”, relata Rogério Ribeiro, cigano da etnia calon e presidente do ICB, que tem sede no Ceará. Segundo Ribeiro, ainda não há registro da covid-19 entre ciganos.
Pedido
No documento encaminhado, a comunidade pede que o estado garanta a distribuição de kits de limpeza, instalação de banheiros químicos, cestas básicas para as famílias, suspensão das execuções de desapropriação e despejo de terrenos e, também, agilidade no repasse do Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza (Funcep) para as entidades.
De acordo o bispo referencial da Pastoral dos Nômades, Dom José Edson Santana, o maior acampamento cigano do estado fica em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), mas também há forte registro de presença deles em Monte Gordo e Jacobina.
“Aqui no Sul [da Bahia], todos estão seguindo as regras e estão reclusos em suas casas, mas isso afeta o trabalho deles de compra e venda de produtos. Muitos são camelôs e vendem panelas. Depois de um mês sem poder negociar, eles já estão com fome”, conta o padre.
Dom José convive com ciganos em Eunápolis (BA), onde existem pelo menos 50 famílias da etnia calon. Estudioso desses povos, ele conta que as primeiras famílias ciganas chegaram ao país através da Bahia, ainda no Brasil Colônia.
(Foto: Divulgação/ICB)
Preocupada com a situação dessa população, a Pastoral dos Nômades emitiu uma carta com orientações para evitar a contaminação, uma vez que os povos ciganos têm fortes agrupamentos familiares. Entre as recomendações, a igreja pede que essa população suspenda suas festividades que possam gerar aglomeração e orienta que os circos cancelem as atividades com crianças e idosos, deixando as lonas, ônibus e trailers abertos.
De acordo com o ICB, muitos ciganos e ciganas também vivem da música e da dança em palcos improvisados. “No entanto, são artistas itinerantes e informais mal remunerados, sem nenhuma garantia trabalhista”, acrescenta a entidade.
Para Rogério Ribeiro, esse momento da pandemia é a oportunidade para que o poder público consiga contabilizar e identificar o povo cigano, já que estão parados. “O que me preocupa é que nós sempre moramos perto um do outro, somos muito familiares e o vírus pode se alastrar entre nós. Pedimos uma preocupação séria com a atualização dos nossos dados, nossa vacinação. Não quero meu povo pedindo esmola, queremos política pública”, ressaltou.
Rifa e até caça
Coordenadora do ICB na Bahia, a cigana calon Edvalda Bispo, a Dinha, mora em Porto Seguro junto com outras 50 famílias. Funcionária da prefeitura municipal, ela conta que já chegou a rifar uma roupa típica para poder ajudar o povo da sua comunidade que sofre com a pandemia. A cidade tem dez infectados, segundo dados oficiais da Secretaria Estadual da Saúde (Sesab).
“Eu costumo dizer que, embora a gente seja um povo tradicional, somos também um povo esquecido, tanto faz numa pandemia ou não. Aqui as coisas pioraram porque ninguém consegue sair para vender um pano de prato. Se os ciganos não derem as caras, se não batalharam para ter o que comer, passa como um povo invisível”, comenta.
Segundo Dinha, foi ela que conseguiu levar a primeira sala de aula para o bairro do Parque Ecológico, onde eles se concentram. A coordenadora conta que fez esse esforço para que seu povo tenha melhor educação e passe a saber mais sobre direitos.
“Eu fiz questão de trazer os cadastradores do Bolsa Família para cá e hoje todos são incluídos no programa”, acrescentou.
Sudoeste
No Loteamento Henriqueta Prates, na cidade de Vitória da Conquista, no Sudoeste da Bahia, são pelo menos 19 famílias, sendo 25 adultos, 15 crianças e sete idosos, segundo expõe o cigano Delvanei Batista de Sousa, líder da comunidade. Ainda segundo ele, outras 16 famílias vivem espalhadas em outros quatro bairros do município — que tem 14 infectados.
“A gente tá enfrentando dificuldade porque as mulheres que vendem laço, roupa, coberta, lençol não conseguem mais ir para as ruas. O que a gente conseguiu de apoio foi umas cestas básicas através do ICB para alguns ciganos daqui. Cigano sofre muito preconceito, é difícil darem uma oportunidade para a gente. Mas cigano é correria, a gente se alimenta é por dia. Eu já soube de grupos aqui da comunidade que saíram para caçar para ter o que comer”, relata Delvanei.
Ciganofobia
Não bastassem as dificuldades financeiras, o bispo José Edson cita ainda que esse povo tem sido vítima de preconceito durante a pandemia por causa dos costumes andarilhos. Numa carta de repúdio da Pastoral dos Nômades, o padre relata dois episódios de violência registrados nas cidades de Dois Vizinhos e Ponta Grossa, ambas no Paraná. De acordo com a Secretaria de Saúde do Paraná (Sesa), Ponta Grossa já registra cinco casos de infectados.
Segundo o documento, famílias de ciganos foram expulsas de terrenos das cidades, onde já tinham hábito de acampar, depois que moradores os acusaram de serem possíveis transmissores do novo coronavírus. As barracas deles foram retiradas do local. “Os ciganos se defenderam alegando que estavam procurando se proteger justamente por serem cidades pequenas, de pouca circulação de pessoas, para não ficarem expostos. Condenar o mais fraco é uma atitude de covardia e medo”, criticou.
Resposta do estado
Procurada, a Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade (Sepromi) informou que está articulando ações e parcerias voltadas ao enfrentamento da covid-19 nas comunidades tradicionais, incluindo os segmentos quilombola, indígena, cigano, de fundos e fechos de pasto, geraizeiros, terreiros, marisqueiras e pescadores artesanais, dentre outros.
A secretaria relatou que uma das iniciativas é o lançamento de uma campanha de orientação, abordando os cuidados essenciais neste período, insistindo na necessidade de maior cuidado com limpeza, restrição de mobilidade e realização de encontros e festejos nas comunidades. As peças da campanha estão em fase de elaboração e “devem circular nos próximos dias”, informou.
A Sepromi garantiu ainda que articula com a Secretaria de Educação (SEC) uma atenção específica aos povos tradicionais no auxílio-alimentação — ainda em fase de análise pelo governo do estado — para famílias que possuem estudantes matriculados na rede estadual de ensino. Em nota, a pasta informou que a titular, Fabya Reis, entrou em contato com a Fundação Cultural Palmares e o Ministério da Cidadania para ampliar o fornecimento de cestas básicas na Bahia.
Por último, a secretaria disse que também oficiou todas as prefeituras do estado solicitando maior atenção à vacinação contra a gripe e abastecimento de suprimentos básicos para a subsistência das famílias dos povos tradicionais.
CONFIRA ALGUMAS CIDADES BAIANAS ONDE HÁ PRESENÇA CIGANA*:
- Antas
- Araci
- Barra do Choça
- Camacan
- Camaçari
- Canavieiras
- Cansanção
- Cícero Dantas
- Euclides da Cunha
- Eunápolis
- Feira de Santana
- Filadélfia
- Guaratinga
- Ibiquera
- Ilhéus
- Irecê
- Itabatã (Mucuri)
- Itabela
- Itabuna
- Itamaraju
- Itambé
- Itapetininga
- Itarantim
- Jacobina
- Jequié
- Jeremoabo
- Juazeiro
- Lauro de Freitas
- Luís Eduardo Magalhães
- Morro do Chapéu
- Porto Seguro
- Potiguará
- Queimadas
- Quichique
- Ribeira do Pombal
- Salvador
- Santa Luz
- São Francisco do Conde
- Serrinha
- Simões Filho
- Valente
- Vitória da Conquista
*As demais cidades não foram citadas pelo ICB.
Fonte: https://www.correio24horas.com.br/